VOCÊ CHEGOU AO SEU DESTINO - POR GISELLE BEIGUELMAN

“Não é o destino que conta mas o caminho”, escreveu Mia Couto em Terra Sonâmbula. Mas na terra em que vivem os habitantes do Google Maps, essa equação não vale. Chegar antes é o que importa. É preciso encurtar rotas, economizar tempo, cumprir rituais de eficiência. Não há mais espaço para a deriva. Todos os roteiros devem estar previstos no Waze, independentemente do fato de conhecermos, ou não, o trajeto que será percorrido. O número de informações sobre nossos percursos, nossos horários e nossos hábitos, que ficará registrado nos bancos de dados dessas empresas, não pesa na consciência de ninguém. Basta ignorar e chegar ao seu destino. Da forma mais rápida. Se possível, sem ver, nem pensar em nada.

Teleguiadas, multidões de motoristas obedecem aos itinerários programados. Qualquer erro no sistema pode levar a uma pane colossal no trânsito. Mas o fato é que não se duvida da razão do GPS. Vozes metálicas, monocórdicas, esvaziam o deslocamento pela paisagem urbana de qualquer emoção. Vire à direita. Dirija 400 metros na direção Noroeste. Curva suave à esquerda. Todas as cidades parecem ser uma só... Como se habitássemos o delírio de um personagem de Sobre o Rigor na Ciência de Jorge Luis Borges. Nesse conto, conhecemos um Império que se esmerou a tal ponto na arte da cartografia que chegou a um mapa que tinha o tamanho do próprio Império. Coincidia com ele ponto por ponto, em uma escala de 1 para 1. Era, no entanto, inútil. Ao abolir a representação, abolia também a imaginação.

É dessa demanda por um mapa de caminhos imaginados que Felipe Cama fala na exposição Você chegou ao seu destino. O título, retirado da mensagem final dos serviços de mapas para celular, é um contraponto irônico à série de pinturas que ele apresenta. Conjunto de nove mapas que registram seus percursos, são diários dos quais todos os dados foram abolidos. Ficaram apenas algumas poucas informações visuais: as formas, descritas pelos contornos dos itinerários, e as cores que ele adiciona, de acordo com critérios pessoais.

O resultado são mapas de lugar nenhum, um “Google Unmapped”. Como se transitássemos, do rastro ao traço, do sulco à sutura, da figuração à abstração. Não por acaso cada um dos mapas é nomeado com a data de sua produção. O tempo aqui se sobrepõe ao percurso. Extratos de uma série iniciada em 2011, são quase-frames de um dia a dia colocado em câmera lenta, contrariando a lógica de um mundo de aceleração permanente. Neles estão espacializados elementos que fogem do Big Data, das grandes massas de padrões.

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Valem aí, nos mapas de Felipe Cama, as aberrações imperceptíveis e os desvios que desestabilizam o universo dos roteiros programados. Rompe-se a organização figurativa original das linhas, permitindo outras constelações simbólicas. Subverte-se o mapa como instrumento de localização e agente de “mineração” de comportamentos, suspendendo a coleta de dados sobre para onde vamos e quando. Sem decalcar um mundo pré-existente, o mapa ganha espessura e volume. Sai da tela e avança sobre a vida. Com todo seu acervo de variáveis indefiníveis e instáveis.

Texto para a exposição "Você Chegou ao Seu Destino", Galeria Zipper, novembro de 2017.

Giselle Beiguelman é curadora, artista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).