O Meu Eu Mesmo Faço - por Paula Braga
O chão da galeria está coberto por grama, demarcando um quadrado verde. Na parede do fundo, há uma foto, pequena. É preciso atravessar o campo de grama para conseguir ver a fotografia. Para tanto, há a sugestão de um caminho, definido com pedras brancas por cima da grama. Tomando o caminho demarcado ou cruzando o campo na diagonal -menor distância entre o ponto de entrada e a fotografia -, o espectador chega à imagem. O que ele vê é um campo de grama sobre o qual foi aberto um caminho espontâneo, pelo pisar constante dos transeuntes. Quem chega à fotografia pelo caminho demarcado pelas pedras brancas sente-se obediente demais, em uma situação em que nada impediria a abertura de um caminho próprio. A obra é O meu eu mesmo faço, de Felipe Cama, instalada no Museu de Arte de Ribeirão Preto, em 2006.
A instituição de arte é um espaço repleto de regras: não toque, não fotografe, não corra. Um poder invisível -talvez a iluminação especial, talvez a aura sagrada do valor financeiro das obras - pressupõe que se fale baixo e que se siga as regras, mesmo as inexistentes. A obra de Felipe Cama imediatamente nos faz rir desse comportamento: se eu não discuto uma regra tão absurda quanto o "não fotografe" em plena era da distribuição sem limites de imagens, se eu não ouso pisar na grama artificial dessa obra, dentro de uma instituição de arte - essa arte que há pelo menos cinquenta anos defende a resistência -,(1) como me comportarei do lado de fora do museu? Confiando que as regras tenham sido escritas por um poder supremo e que, portanto, devem ser sempre obedecidas? Obras como O meu eu mesmo faço justamente apontam no sentido oposto. E isso já sabem bem as camadas menos favorecidas pelas regras da nossa sociedade: gatos elétricos, picadas no morro, labirintos de vielas são os caminhos espontâneos· de quem vive e sobrevive inventando os próprios recursos; marcam os fluxos naturais que a regra deveria simplesmente ratificar, seguindo a vontade coletiva.
Da mesma forma que o papel do artista, para Hélio Oiticica, é "suscitar no participante, que é o ex-espectador, estados de invenção", o arquiteto-urbano seria o suscitador, o tradutor e o catalisador dos desejos dos habitantes. Partiria da ideia de um laissez-faire organizado; partiria, por exemplo, do princípio de que a melhor maneira de se criar um caminho de pedestres em um gramado é vendo a trilha deixada na vegetação pelos próprios passantes.(2)
A ideia do caminho aberto espontaneamente na grama, da obra de Felipe Cama, nos conduz a uma aproximação entre a arte contempor nea e o espaço liso dopensamento nômade -do pensamento como máquina de guerra, na definição de Gilles Deleuze. Como as pedras brancas, que, na obra de Cama, definem um caminho previsível e o movimento ordenado -a distância entre as pedras define até a largura do passo -, o espaço estriado é uma grade que admite apenas movimentos pré-definidos. Já o espaço liso "é o lugar dos fluxos, dos livres movimentos, da turbulência, do devir (não há nada pré-configurado nele)". (3)
É interessante notar a coincidência geométrica de conceitos como o espaço estriado de Deleuze e a partilha do sensível de Jacques Ranciere. Ambos pressupõem uma grade de fundo, um espaço de movimentação limitada e pré-definida, a ser transgredido. Ambos defendem uma ruptura das estrias, das linhas de delimitação, que restringem o movimento no mundo. Em Ranciere, as linhas que definem uma partilha do sensível são traçadas com a régua da divisão do trabalho, do fazer que cabe a cada um e que estabelece competências para interferir no comum. (4) Para Deleuze, as codificações que demarcam as linhas do espaço estriado (ou sedentário) advém da lei, do contrato e das instituições (5). Rancière, assim, provê uma via de escape mais acessível ao indivíduo: seja lá o que digam as leis, contratos e instituições, é na mão de cada um, no fazer, que reside a possibilidade de escapar de um modelo pré-definido de divisão do sensível: ser um nômade que corta caminho pela grama, ignorando o caminho de pedras paisagisticamente bem instalado. A obra de arte pode ser uma máquina de guerra que incita a autoria de seus próprios caminhos, pois é preciso, primeiro, saber que existe a possibilidade de escapar da grade, rumo a um espaço liso.
Na série Paisagens Street View, Felipe Cama investiga o esfriamento do espaço virtual ao usar duas ferramentas de mapeamento do planeta, o Google Maps e o Google Street View. O artista busca nesses mapas virtuais os pontos mencionados por pintores de paisagens ao longo da história da arte. Assim, vai encontrando o monte Sainte-Victoire de Cézanne, a vista de Delft de Vermeer, a vista da cidade de Toledo de El Greco, o Rio São Francisco de Frans Post. Mostra-nos, então, usando imagens do Google Street View, uma imagem recente desses lugares, desses pontos cartografados pela história da arte, mesclando o registro do passado com o registro do presente. A imagem resultante é cortada por uma grade de linhas finas, que formam pequenos quadrados, como pixeis, por cima da fotografia em baixa resolução, que revela a origem digital da imagem usada. Embaixo da imagem, o artista acrescenta o ponto no mapa referente àquela cena, também de acordo com o mapeamento do mundo feito pelo Google Maps. Ora, temos aqui a sobreposição de várias grades, de vários espaços estriados: a história da arte, o mapeamento do planeta por uma empresa que hoje é a referência mais forte em indexação de informação, e a grade propriamente dita, que recorta a tela em pequenos quadrados. Como fazer de tantas grades um espaço liso?
Antes de responder, comparemos essa obra com outra produção artística que utiliza mapeamentos do mundo. O artista Fernando Velázquez busca pontos de intersecção da grade formada pelas linhas de latitude e longitude na obra Descontínua paisagem. A autoria coletiva entra nessa obra em vários níveis: o espectador é convidado a enviar uma mensagem de texto (SMS) para um certo número de celular. Essa mensagem contém dois números: uma latitude e uma longitude. Um programa de computador procura no site confluence.org fotografias da localidade definida pelo par latitude-longitude escolhido e monta um filme em tempo real com as fotografias que encontra-daquela localização. Por sua vez, o site confluence.org é feito coletivamente. Pessoas de todo o mundo visitam as confluências de latitude e longitude que sejam números inteiros, como 12 Sul -52 Leste. Cada visitante fotografa o local voltando a câmera para os quatro pontos cardeais. Que outras formas de registro de um ponto do planeta existem? Coletar terra ou pedras do local, como faz Marcelo Moscheta, por exemplo. (6) A opção por coletar imagens digitais facilita a distribuição em rede e o armazenamento de uma representação de lugar. As quatro fotografias registrando vistas dos quatro pontos cardeais segundo o par latitude/longitude selecionado ficam armazenadas no confluence.org, iunto de um relato da viagem até o lugar. O Brasil, por exemplo, tem 731 pontos de confluência de latitudes e longitudes, dos quais 365 já estão registrados. (7) O espaço estriado foi subvertido por uma profusão de imagens amadoras, que representam a superfície da Terra. Isso não apaga completamente as linhas de demarcação, mas confere ao fotógrafo anônimo a possibilidade de registrar, à sua maneira, cada ponto da grade, e nela pendurar um relato intimista sobre a viagem que fez até aquele ponto.
A grade então transforma-se em uma rede de desbravadores de pontos específicos da Terra. Não há tanta diferença entre registrar um desses pontos ou - enviar um cartão postal avisando "l'm still alive", como fez On Kawara. Continuamos no registro das mensagens mais básicas: eu existo, eu estive aqui. A obra Descontínua paisagem dá sequência a essa rede de pessoas do mundo todo que participam do confluence.org. Fernando Velázquez oferece aos visitantes de sua obra a possibilidade de compor um filme usando as imagens de viajantes anônimos.
Temos então duas formas de mapeamento do mundo com base em imagens de bancos de dados. Enquanto Descontínua paisagem, de Velázquez, coleta suas imagens em uma rede anônima de geradores de imagens, a obra Paisagens Street View, de Cama, pesquisa imagens do planeta geradas por um comando central, o Google Street View. Os parâmetros de decisão sobre qual ponto do planeta explorar ficam em uma grade que é respeitada (latitude-longitude) em Velázquez, e em uma grade das paisagens mais famosas da história da pintura, em Cama. O alisamento das grades que embasam as duas obras se dá na geração de um terceiro elemento escorregadio e embaçado: os filmes gerados pelo algoritmo de Velázquez ou as imagens em baixa resolução de Cama. Além disso, ambos alisam o espaço ao descontextualizar as obras originais - chamando aqui de obra tanto o registro fotográfico do amador quanto a pintura de paisagem de Vermeer.
Descontínua paisagem define um território alternativo, um outro mapa, uma outra cartografia, diferente daquela ofertada por um atlas. E a "pintura de paisa-gem" da era das redes, da era de construção coletiva de topologias subjetivas, de uma postura de mundo do tipo “meu eu mesmo faço”.
A sociedade da era das redes deveria ser menos obediente aos espaços estriados. A topologia da rede imediatamente aponta para o entrelaçamento confuso dos fios que fazem um rizoma. São tantos os caminhos na rede, como nas raízes de um gramado, que cada um poderia fazer o seu, como sugere a obra de Felipe Cama. Mas concordamos demais com termos e condições que não lemos.
(1), Gilles Deleuze. "O ato de criação", Folha de S. Paulo, 27 iun. 1999. Republicado em Rodrigo Duarte (org.). O belo autônomo: textos clássicos de estética. Belo Horizonte: Autêntica/Crisálida, 2012.
(2) Paola Berenstein Jacques. Estética da ginga: a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001, p. 1.51.
(3) Regina Schõpke. Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade. Rio de Janeiro: Contraponto / São Paulo: Edusp, 2004, p. 171.
(4) Jacques Ranciere. A partilha do sensível. São Paulo: EXO experimental / Editora 34, 2005, p. 17.
(5) Schõpke, op. cit., p. 173.
(6) Marcelo Moscheta. São Paulo: Bei, 2011.
(7) Disponível em: www.confluence.org.
Texto escrito em 2012 como parte da pesquisa de pós-doutorado realizada no Instituto de Artes da Unicamp, sob supervisão de Maria de Fátima Morethy Couto, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Publicado no livro Arte Contemporânea: Modos de Usar, de Paula Braga (Editora Elefante - 2021)