Código Aberto – por Guy Amado
Algumas questões impelem desde sempre a produção de Felipe Cama. Desde suas primeiras incursões artísticas é sensível o interesse por uma certa ideia de imagem, quer por seus modos de difusão, circulação e reprodução no âmbito da cultura digital e virtual, quer pela capacidade de estabelecer novos nexos e interpretações ao sofrer manipulações ou deslocamentos simbólicos. Os fragmentos das cinco séries ora expostos apresentam sinteticamente o escopo de temas e inquietações que movem a obra do artista.
Foi assim que me ensinaram [2005], trabalho mais “antigo” do conjunto aqui presente, é o único a não apresentar um elemento caro aos demais expostos: o recurso ostensivo a processos digitais em sua elaboração. Por outro lado, é uma peça emblemática da lógica sob a qual se conforma o leimotiv do artista. Pequenas pinturas a óleo reproduzem imagens de obras seminais da arte modernista tardia e contemporânea presentes em livros de história da arte; o registro adotado pelo artista em sua fatura, no entanto, segue à risca as características da reprodução impressa, e não as da pintura original. Assim, as cores [ou sua ausência] e dimensões [diminutas] dessas pinturas serão agora dispostas exatamente como constavam nos livros ou revistas de onde foram escolhidas, gerando um improvável apanhado de réplicas ou delicados quadrinhos “como-estava-no-livro”, brincando com a suposta grandiosidade originária de algumas destas obras [das quais o caso mais emblemático é o do Barnett Newman ali reproduzido]. Um jogo de imagem e representação, onde a pintura é a representação fiel e literal daquela imagem que por sua vez é a um só tempo matriz e mera representação [impressa] da pintura. Nessa operação semi-tautológica, Felipe comenta de forma irônica e saborosa uma situação típica de contato com a arte e formação de repertório de artistas e interessados em geral. Tais percursos são tradicionalmente construídos [sobretudo nos países fora do eixo Europa-EUA, onde o acesso a bons museus é menos viável] a partir de reproduções em livros e revistas, sempre mais ao alcance dos olhos que museus de excelência – e, mais recentemente, disponíveis em larga escala também na internet.
Internet que terá papel determinante na produção subsequente do artista, que nela encontra meios e matéria-prima para investigações em torno de nossa relação com a imagem – especialmente a imagem eletrônica: seu estatuto ambíguo enquanto matriz de uma experiência de visualidade [possível], sua gênese, circulação e instâncias de consumo. É amparado em imagens e ferramentas que estão a seu alcance na grande rede virtual que o artista irá desenvolver grande parte de sua fatura. E a propósito disto, convém aqui assinalar um fato que julgo ser importante: Felipe atua paralelamente na publicidade, há muito tempo; e muito de sua cultura visual e familiaridade na lida com a imagem advém desta formação – depois alargada numa faculdade de arte – e rotina de trabalho atrelada binomal à tela do computador, e ao regime de imagens tal como ali transcorre. Tal dado, mais que contextualizar, será naturalmente decisivo no modo como o artista elege a plataforma digital e a experiência virtual como fontes de alimentação para sua produção artística. O binômio computador-internet conforma o eixo central da plataforma de trabalho do artista, tanto do ponto de vista técnico-instrumental como de um reduto de idéias para seus projetos: ali Felipe encontra um vasto campo de temas e assuntos a serem explorados, especialmente no que se refere às próprias possibilidades e limitações inerentes à natureza eletrônica destes meios.
As séries Nus versus [2007-09], After Post [2010] e Paisagens Street View [2011] explicitam a influência dessa matriz digital na obra de Felipe Cama. Na primeira como na segunda, ele recorre ao processo de impressão lenticular – que produz um efeito óptico em função do ângulo de observação – tanto para promover paridades incomuns entre obras de arte [nus famosos da história da arte moderna] e imagens eróticas amadoras [caso dos Nus versus], como para estabelecer correspondências entre pinturas paisagísticas de Franz Post e imagens atuais destes mesmos locais, todas por ele encontradas na Net. O resultado é uma reflexão sobre uma nova hierarquização entre essas imagens, agora “niveladas” pelo pixel. Institui-se assim como que um “achatamento” ou equivalência de estatuto entre a imagem-matriz e sua contrafação de ordem mais banal ou mundana.
As interferências operadas por Felipe não ignoram a baixa qualidade da resolução original da imagem, antes pelo contrário: e ao amplificá-la, fala assim sobre sua própria natureza, lembra que é antes de tudo informação codificada; sua gênese está num código binário. Talvez seja esse o grande mote de Felipe: o afã em fazer esse código afigurar-se, trazer essas camadas por trás da imagem para o plano do sensível (1). Em termos de procedimento, seu processo vai se entrincheirando cada vez mais no repertório de possibilidades da internet, o que também colabora para um fechamento conceitual das propostas: na terceira série, vale-se de um popular aplicativo de localização de lugares – que inspira o título da obra – para chegar às imagens que correspondam, na atualidade, às paisagens originalmente descritas nas pinturas das quais nasce o trabalho.
Cabe notar que, apesar de estar sempre lidando com a imagem, o artista praticamente não remete à fotografia – historicamente o veículo de maior difusão da imagem – num sentido mais estrito. Ou melhor, a fotografia parece interessar enquanto “apenas” imagem, e menos como forma definida por uma linguagem. Claro que a eleição do foco na matriz digital ou eletrônica ajuda a afastar essa tônica, mas ainda assim de um modo ou de outro ela se faz presente, como no primeiro trabalho comentado neste texto. Mas é no geral um registro que atém-se a uma presença de fundo; seu lugar na produção do artista é o de atuar sobretudo como veículo da imagem, e não como uma referência-matriz de linguagem, com toda sua carga de especificidade.
No entanto, uma exceção nesse sentido surge no projeto Notícias de lugar nenhum [Made in china], onde o mote para o que virá a ser o trabalho é fornecido por uma situação fotográfica-clichê: um ponto turístico arquetípico – a Praça TianAmen e a Cidade Proibida, em Pequim –, onde milhares de pessoas se aglomeram regularmente para registrarem – e sobretudo registrarem-se ali – um sítio carregado de história. Neste local se constata de modo hiperbólico aquela faceta da fotografia que estabelece uma “relação voyeurística crônica com o mundo”, como apontava Susan Sontag (2), quando a foto, pelas vias do excesso, atua como uma espécie de nivelador do significado dos acontecimentos. Partindo deste contexto e de fotografias tiradas por ele próprio e outras encontradas na Web, todas enquadrando o local de modo quase idêntico, o artista concebe uma série de pinturas, a serem realizadas sob encomenda num dos hoje internacionalmente notórios ateliês de pintura chineses especializados em reproduzir em escala industrial obras canônicas da cultura ocidental. Situação que por si só já bastaria para um tratado sócio-cultural, e que Felipe decide explorar pelas vias que lhe são mais próximas: a do comentário-reciclagem da imagem. Após reunir um vasto conjunto destas em torno da mesma situação-clichê, plena de simbolismos sócio-culturais e políticos – e no entanto esvaziados em detrimento da pulsão meramente “voyeurística” que gera essas fotografias –, o artista encomenda sua reprodução na forma de pinturas a umas destas fábricas de simulacros em série. O resultado final, um painel de 40 pinturas-representando-fotografias, funciona como uma espécie de síntese visual que põe em causa os diversos aspectos e conotações que a imagem possa evocar ou desempenhar neste percurso novamente quase tautológico. Afinal, a imagem fotográfica que deflagrou o processo, tendo por tema o ato de fotografar, é reproduzida em pinturas, por sua vez executadas num esquema de produção serial que as aproxima do caráter de reprodutibilidade indefinida próprio da fotografia. E o termo “síntese” fecha-se aqui em duplo sentido, na medida em que também designa-se como “imagem de síntese” aquelas geradas por processos digitais, de origem algorítmica – os já mencionados códigos binários que tanto interessam ao artista.
Em livro recente, Jacques Ranciére fala de uma “imagem pensativa” (3). O filósofo francês refere-se à possibilidade de “uma imagem que contém pensamento não pensado [...], que não é suscetível de ser atribuído às intenções daquele que a produz”. Uma capacidade reflexiva da imagem que seria ativada e se ofereceria à revelia de seu autor e mesmo do objeto que represente, por exemplo. Mas a imagem pensativa demarcaria ainda uma zona de indeterminação entre o que Rancière distingue como dois tipos de imagens: a imagem como duplo de uma coisa e a imagem como operação de arte. E aí surge uma convergência feliz com o trabalho de Felipe Cama, na medida em que parece ser precisamente essa dualidade que alimenta e impulsiona sua produção: a imagem que em última análise é um duplo de si mesma, auto-referente, ao explicitar sua origem e processos de consumo em diferentes soluções, e que logra – pelos procedimentos descritos – adquirir sua condição autônoma de objeto de arte.
Guy Amado – Junho de 2011
(1)Talvez o trabalho mais “fisionomicamente” revelador desta pulsão seja a série Acervo [2007], onde o artista extraía os códigos binários de obras de arte da Pinacoteca Municipal de SP e os convertia digitalmente em displays LED. Assim, as obras eram experienciadas literalmente enquanto sua transposição em números luminosos.
(2) SONTAG, Susan. On photography. New York: Farrar, Straus and Giraux, 1977. [pag.7]
(3)RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010, [p.157]
Publicado originalmente no folder da exposição “Felipe Cama” – SESC Ribeirão Preto, 2011.