Acessando o mundo através de zeros e uns – por Luisa Duarte
Internet, messenger, skype, webcam, celulares, são todas tecnologias de comunicação que tornam possível uma interação que dispensa o contato “real”. Duas pessoas podem se “falar” por dias, meses, anos, sem que precisem ocupar o mesmo espaço e tempo. Este é um fenômeno recente que reverbera nas relações pessoais, mas também repercute na lida com a esfera das imagens.
Felipe Cama está atento a estas profundas mudanças que se operam no presente. Na atual exposição no CCSP o artista exibe dois trabalhos, o primeiro deles, “Modigliani X Alexandra”, se trata de duas grandes fotografias, extremamente semelhantes, dispostas uma frente à outra. Ambas foram capturadas na Internet e sofreram um processo no qual Cama adultera a imagem diminuindo o número de pixels – partícula formadora da imagem digital. O que se vê são imensos mosaicos de cores, nos quais se desvela formas que sugerem uma mulher posando para um nu.
Estamos diante de imagens apropriadas, uma pintura do italiano A. C. Modigliani (1884-1920) e uma foto pornográfica anônima, recebida via e-mail. Ao serem submetidas ao mesmo processo de pixelização, as imagens da pintura – única, de grande valor artístico e mercadológico – e da foto pornô – mais uma entre milhões – perdem sua distância “hierárquica”, revelando uma desconcertante proximidade. A operação realizada por Cama deixa o nu de Modigliani e a menina gostosa que se diz chamar Alexandra em pé de igualdade.
Se na origem as fotos têm uma natureza completamente distinta, ao entrarem na rede, tanto a pintura quanto a foto pornô passam a ser imagens digitais prontas para o consumo imediato. Mesmo a obra única, feita para ser apreciada in loco, acaba despida da sua materialidade, ao circular pela rede na forma de imagens digitalizadas nos mais diversos sites. A pintura sai da materialidade física original da tela e da tinta para tornar-se pura informação digital, reproduzida numa escala gigantesca, que não se via na era da foto analógica. Esta nova forma de circulação pode engendrar olhares habituados a ver através de filtros. Esquecidos do referente primeiro. Assim como o consumo compulsivo de pornografia via Internet provoca um outro olhar, que não se pergunta sobre a maneira como estas fotos são produzidas, distribuídas e consumidas. Em nenhuma etapa deste ciclo as imagens chegam a se materializar fisicamente. O autor das fotos e as garotas são anônimos sem rastro. Ambos só existem na forma de impulsos elétricos. Nada se materializa. Tudo é “re”presentação. E não “a”presentação. Diferença seminal que governa nosso tempo. Hoje, na forma de pixels, obras clássicas da história da arte se confundem com prosaicas fotos pornográficas.
No outro trabalho que faz parte da exposição, o artista realiza um diálogo com o acervo da Pinacoteca Municipal. Em uma parede vemos sete painéis luminosos que exibem em movimento os números 0 e 1. Ao lado de cada um há uma ficha técnica de uma obra de arte. Os displays mostram o código binário referente à representação digital da obra referida na ficha, ou seja, a própria imagem em linguagem digital. Cama escolheu sete desenhos de nus reproduzidos digitalmente no site do CCSP. Estão ali, à nossa frente, trabalhos de artistas reconhecidos como Tarsila do Amaral, Milton Da Costa e Anita Malfatti.
Ao invés de nos dar a ver as obras, temos os códigos que as constituem digitalmente. Aqui o artista prossegue com a sua pesquisa sobre o universo das imagens digitais, bem como questiona a relação do espectador com os acervos públicos, cuja visibilidade no Brasil é quase nula. Trata-se ainda de uma obra conceitual do início do século XXI. Nos anos 1960, J. Kosuth realizou o trabalho que se tornou ícone desta tendência, One and three chairs (1965), feito de uma cadeira, da fotografia da cadeira e da definição que o dicionário oferece do vocábulo. A arte se tornava menos visualidade e mais discurso. Hoje, para realizar uma operação desta natureza os códigos são outros. Felipe Cama está atento para estas novas regras do jogo, pensando criticamente o lugar da arte diante deste presente, que se representa, assepticamente, não mais por palavras, mas por zeros e uns.
Publicado originalmente no folder da III Mostra do Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo, em novembro de 2007