Alta ansiedade – por Mario Gioia
O culto das marcas é o eco do movimento de destradicionalização, do impulso do princípio de individualidade, da incerteza hipermoderna posta em marcha pela dissolução das coordenadas e atributos das culturas de classe. Quanto menos os estilos de vida são comandados pela ordem social e pelos sentimentos de inclusão de classe, mais se impõem o poder do mercado e a lógica das marcas. (…) É sobre um fundo de desorientação e de ansiedade crescente do hiperconsumidor que se destaca o sucesso das marcas.”
Incerteza, desorientação, ansiedade. Gilles Lipovetsky, em seu “A Felicidade Paradoxal”, discorre sobre o que ele denomina de sociedade de hiperconsumo, cujo desenvolvimento está alicerçado nessas certezas tênues, movediças, instáveis. Como bom artista, Felipe Cama se propõe a mergulhar nessa era de excessos, no que se desenrola hoje, e produz algo que está profundamente imiscuído nesses tempos tão pouco precisos e puros.
Se em séries como “O Que Te Seduz?”, o questionamento dos signos de consumo é mais evidente, Cama parece embaralhar cada vez mais estratégias de apreensão da imagem em trabalhos posteriores, como “Search Ericka” e “Notícias de Lugar Nenhum (Made in China)”.
Via registros fotográficos, “O Que Te Seduz?” se baseia na exibição de produtos destinados, a priori, ao consumo de luxo das megalópoles contemporâneas. Mas a autenticidade é desmentida logo que vemos, ao lado da fotografia de apresentação impecável, cartões de lojas de “contrabando”, oásis da pirataria que funcionam sem interrupção em locais conhecidos de São Paulo, como as regiões da rua 25 de Março e da avenida Paulista.
Em “Notícias de Lugar Nenhum (Made in China)”, porém, o artista cria e, ao mesmo tempo, se sujeita a condições ainda mais imprevisíveis desse hiperconsumo, tirando proveito e tornando mais provocativa sua intenção. Intrigado com o sem-número de imagens perturbadoramente parecidas a um clique que fez na Praça da Paz Celestial, em Pequim _armazenadas nos grandes álbuns da web, como o Flickr, o Panoramio e o Picasa, entre outros_, Cama agrega outro de seus espantos, a existência de um distrito destinado exclusivamente à cópia de obras de arte, em especial a pintura a óleo, no país asiático.
Em negociações cujos termos se assemelham a trechos do roteiro de um filme nonsense, mas que constituem um diálogo assustadoramente real, o artista encomenda a um desses ateliês copistas 40 reproduções de registros fotográficos do marco turístico chinês. Não deixa de ser um comentário sobre o turismo sem freio de nossos dias _Cama poderia, em um capítulo posterior, investigar a indústria de lazer dos cruzeiros transatlânticos, tão inventivamente discutida no longa “Film Socialism”, do mestre Jean-Luc Godard, ou na série fotográfica “Royal Caribbean Cruise Line”, do jovem venezuelano Luis Molina-Pantin.
“Search: Ericka” é pungente em escancarar a impossibilidade do privado na vida em rede. O artista novamente logra, ao questionar os dispositivos de mediação no mundo contemporâneo. Partindo de uma pessoa que conheceu muito tempo atrás, Ericka, Cama vai montando um quebra-cabeça tendo como foco a trajetória dela, anos a fio. O quadro inicial é a tela de um computador, que exibe o Google com seu campo de busca preenchido com o nome da “protagonista” da série. Momentos-chave da vida de Ericka, mais ficcionais ou mais verazes, ganham um outro tipo de registro, o pictórico, e hoje fazem parte do acervo de um dos principais museus brasileiros, o MAM-SP (Museu de Arte Moderna de São Paulo). Se pensarmos que as pinturas, algum dia, possam itinerar _possibilidade palpável, nesse universo de trocas institucionais globalizadas_ para o país natal de Ericka, os EUA, a potência do trabalho é ainda mais realçada.
E assim a obra de Cama vai percorrendo os meandros de nossas relações intrincadas, complexas e supermediadas. Suas últimas séries ostentam mais vigor, em comparação às anteriores “Foi Assim Que Me Ensinaram” e “A Escolha”, entre outras, que debatem o problema da representação e a ruidosa veiculação das imagens-símbolo das histórias da arte moderna e contemporânea.
Com “Search: Ericka” e “Notícias de Lugar Nenhum (Made in China)”, o artista consegue fincar de modo mais incisivo no seu trabalho a incômoda percepção da vertiginosa e confusa circulação da nossa era, que um dia foi nomeada como “da informação” e hoje se aproxima mais da de “turboconsumidores”, outra vez tomando emprestada denominação de Lipovetsky.
Mario Gioia – Dezembro de 2010
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