Coletiva Território de Caça, curada por Mario Gioia, na Galeria Zipper, São Paulo. Dezembro de 2011.
TERRITÓRIO DE CAÇA – POR MARIO GIOIA
“Você concordaria com a afirmação de Smithson de que você, Dennis, e Mike estão envolvidos em uma dialética entre o exterior [the outdoors] e a galeria?
Oppenheim – Acho que a relação espaço ao ar livre/espaço interior em meu trabalho é mais sutil. Realmente não carrego comigo um conceito de perturbação da galeria; deixo isso para trás, na galeria. Ocasionalmente considero o site da galeria como se fosse um território de caça.” (1)
Território de Caça, coletiva com 11 artistas que finaliza a temporada 2011 do projeto Zip´Up, se espalha pela Zipper Galeria tendo como lastro a fala de Dennis Oppenheim, em discussão com Michael Heizer e Robert Smithson (1938-1973), numa entrevista à publicação Avalanche, em 1970. Do trio-chave que sedimentou o conceito de land art na contemporaneidade, vem para esta mostra em 2011 muito mais suas ideias, escritos e conceitos do que uma transposição algo literal de trabalhos que intervêm sobre a natureza.
O legado da land art, da earth art e da environmental art se liga, assim, com o lidar de escalas expandidas, a dissolução de bordas e limites, o embate com o desconhecido, a formulação de tipologias de registro, a criação de mapeamentos variados e a compreensão de pensamentos e vivências essenciais, entre outros caminhos.
“Porque acho que a arte se preocupa com os limites, e estou interessado em fazer arte. Você pode chamar isso de tradicional, se quiser” (2), declara Smithson a respeito da suposta dicotomia entre obras ao ar livre e peças exibidas em um cubo branco. “Particularmente não quero prosseguir com a analogia entre a galeria e as planícies alagadas. Acho que as únicas limitações importantes na arte são aquelas impostas ou aceitas pelo próprio artista” (3), completa Heizer.
A coletiva também não ignora em sua conceituação a importância de obras nacionais como Arte Física: Clareira (Caixas de Brasília), de 1969, conjunto de fotografias, mapa e duas caixas de Cildo Meireles. “Nesses trabalhos, que envolvem procedimentos da performance e da land art, o artista coloca em questão a relação do homem com a ideia de território, propondo novas fronteiras geográficas entre os Estados, ou delimitando áreas provisórias em diferentes regiões do país” (4), frisa Heloisa Espada no ensaio Cidade-Bandeira. Também pode ser elencados Fronteiras, projeto coordenado por Sonia Salzstein que resultou em intervenções de nomes como Nuno Ramos e Angelo Venosa em vários pontos do país, iniciado em 1998; séries e trabalhos de Nelson Felix, como O Grande Budha (1985-2000); e experiências de Hélio Oiticica (1937-1980) como Contra-Bólide (1979), entre outros.
Em exibição
Uma espécie de halo avermelhado dissipa a tênue presença atrás do tronco de uma árvore, em uma paisagem nevada. A fotografia da série Secret Forest, de Estela Sokol, foi feita durante residência da artista paulistana na Áustria. Desdobra pensamentos espaciais já esboçados por Sokol em momentos anteriores, como em Crepúsculo, quando uma madeira pintada em negro também deixa transparecer uma “luz” púrpura, ou em Polarlicht, realizada também na estada europeia, em que uma linha orgânica e alaranjada finca sua precária existência num alvo campo dos Alpes.
A reinterpretação da paisagem e o caráter exploratório do artista contemporâneo, em trânsito constante, são dois eixos que ligam a obra de Sokol à de Mariana Tassinari, cujos trabalhos trazem influências minimalistas e seriais de um Donald Judd, por exemplo. A repetição de estruturas regulares de cor e a sua inserção em terrenos estrangeiros fazem parte de diversas séries de Tassinari. As intervenções cromáticas que alteram o céu de fotografias captadas na Jordânia, mudanças estas feitas via computador, apontam novos procedimentos do artista-viajante de hoje. Contudo, Campo em Branco se vale do ínfimo “movimento” de esferas de sinalização presentes em fios de alta tensão. Tal deslocamento só é percebido por meio do registro contínuo do horizonte pelo foco da máquina fotográfica da artista, ela mesma em intensa movimentação, imersa em um fluxo ininterrupto de construção de imagens.
Já o mineiro João Castilho espalha ações de pequeno porte, vestigiais, com montes de pedras em locais variados. “Sob a luz morta de Passaic, o deserto torna-se um mapa de infinita desintegração e esquecimento”, assinala Smithson, em excerto reproduzido pelo artista na pequena publicação que também integra a série Peso Morto. “Para mim, as questões da land art estão muito mais relacionadas às questões da visão, do tempo e da entropia do que de intervenções efêmeras ou duradouras na paisagem”, diz Castilho.
Tacuarembó. A inusual palavra que informa o nome da cidade na qual poderia ser demarcado um centro geográfico dos pampas, que se desenham inicialmente nos campos gaúchos, é confeccionada sob a forma de um letreiro, semienterrado na paisagem típica da região. Estrutura criada tal qual a célebre “Hollywood”, indica um contraponto algo selvagem, não domesticado, impressão salientada por Paisagem com Ondas, obra sonora de Camargo que funciona como um amálgama de sonoridades regionais e ecos algo violentos de um vento contínuo.
Felippe Moraes, no vídeo Dos Templos, utiliza uma estratégia mais sorrateira na captura da natureza do entorno. Apoiando um espelho sobre a grama, o dispositivo registra as lentas ondulações de um céu azulado, pontuado por nuvens de traços e volumes variados. Uma percepção das mais triviais ganha outro sentido mediante a desaceleração do tempo (e o vídeo também pode ser lido como um tributo audiovisual a Hydra’ s Head, instalação disposta no rio Niágara por Nancy Holt, em 1974).
“A Nasa pretende começar nesta semana uma nova fase nas missões para Marte.” (5) O início de reportagem datada de 20 de novembro de 2011 em um jornal diário parece guardar uma característica atemporal, que expõe o anseio humano por desbravar algo, a priori, inacessível e distante. A Lua, impresso criado por Fernanda Barreto que se apropria de publicação de 1966 _ ou seja, pré-missão Apollo 11, de Armstrong, Aldrin e Collins, que pousou na Lua em 1969 _ , é exímio em descortinar um olhar que mescla ingenuidade, fantasia e alienação frente ao diverso e ao desconhecido. A Lua tem mais a ver com Once Upon a Time, de Steve McQueen, do que com a National Geographic.
A outra peça de Barreto na mostra, Confluência, é uma intervenção em vinil adesivo numa das portas de vidro da galeria. A circulação curva, originária de extratos de imagens do Google Earth, cria um curso d´água constituído de territórios múltiplos. De certa forma, não se distancia tanto do experimento (não realizado) de Sculpture to Be Seen from Mars, de Isamu Noguchi (1904-1988), projeto de 1947 que almejou criar uma face humana numa superfície de areia de metros de extensão.
Hubble, série fotográfica de Manoel Veiga, também se vale de um procedimento de apropriação, desta vez do potente telescópio que dá título ao trabalho. “A série tem a ver especificamente com a minha pintura que lida com fenômenos físicos (difusão, gravidade etc.) que também estão presentes na grande escala cosmológica, daí uma certa semelhança visual. Note também que a forma como construo o espaço em Hubble é bem semelhante à da pintura, saiu dela, e assim crio um novo espaço/paisagem fictício usando o próprio cosmos como matéria-prima”, considera ele.
Felipe Cama tem na fricção das mediações contemporâneas um de seus eixos poéticos. Em After Turner ‘Chichester Canal’ (Street View), o artista radicado em São Paulo não deixa de utilizar as ferramentas disponíveis _ o Google Street View, que possibilita incursões extensas pelo globo, apenas por cliques horas adentro pela web _ para empreender ações exploratórias, mesmo que ele não vá fisicamente para tais destinos. O Chichester Canal, eternizado em tela de Turner (1775-1851), é localizado depois de intensa navegação virtual de Cama. A imagem reticulada que registra o momento atual da paisagem anteriormente retratada pelo pintor britânico, unida ao mapa situado logo abaixo, torna-se uma cartografia ruidosa da circulação e do isolamento da nossa época.
Duas obras tridimensionais se destacam em Território de Caça. Das Erosões: Máquina I é um engenho criado por Raquel Versieux que mimetiza os movimentos erosivos da natureza e, por meio de uma hábil construção com duas cadeiras e recipientes que contêm terra coletada à beira de estradas, tensiona o ambiente expositivo controlado e, por um vazar d´água freqüente, ressignifica o locus da arte.
E Maura Bresil dá continuidade a trabalhos como Mar Aberto: Ensaio de um Processo, apresentado na coletiva Ateliê Fidalga no Paço das Artes, e Arrebentação, nos quais discute o status da representação fotográfica por meio de inspiradas intervenções na natureza. O site specific implantado na sala expositiva que sediou os seis recortes anteriores do projeto Zip´Up passou por várias etapas em sua elaboração. Uma impressão fotográfica de um pequeno e raso trecho de praia é colocada no próprio mar, à mercê de sol, ondas, areia. A artista registra esse gesto desprendido e o incorpora à instalação na galeria. Desta vez, tal imagem da ação colocada sobre um cavalete de ateliê é corroída novamente pela água marinha, mas por meio, agora, de um dispositivo que pinga o líquido salinizado ritmadamente, sem frenesi, na superfície fotográfica. O desgaste da matéria gera um resíduo algo pictórico, em verde turvado, num resultado poético e pouco estável.
Por fim, Shirley Paes Leme tem um projeto que ilumina obras de nomes mais recentes presentes em Território de Caça. Formas Lúdicas no Espaço (1979-1982), apresentado apenas em Uberlândia (MG), onde foi realizado, e nos EUA, era uma instalação permanente em área pública de 12.000 m2, a céu aberto, composta de 30 estruturas de grande porte, utilizando madeira e corda de sisal. Brinquedos que lembravam “Penetráveis”, redes, túneis e variados equipamentos que reuniam desde rememorações infantis da artista, vivida na zona rural entre Minas e Goiás, e as brincadeiras em áreas externas das crianças da cidade. Um lugar que poderia ganhar o comentário de Mário Pedrosa (1900-1981), “exercício experimental da liberdade” (a respeito de obra de Antonio Manuel). A exposição apresenta documentação original de Formas Lúdicas no Espaço, como plantas, fotografias e croquis, jogando luzes sobre um projeto pouco conhecido de artista nacional sempre preocupada com a interação entre público e obra, natureza e artifício, concretude e pensamento.
Mario Gioia
Graduado pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), foi o curador, em 2011, de Presenças (Zipper Galeria), inaugurando o projeto Zip’Up, destinado a novos artistas (que teve como outras mostras Já Vou, de Alessandra Duarte, Aéreos, de Fabio Flaks, Perto Longe, de Aline van Langendonck, Paragem, de Laura Gorski, Hotel Tropical, de João Castilho,e a coletiva Território de Caça, com a mesma curadoria). Em 2010, fez Incompletudes (galeria Virgilio), Mediações (galeria Motor) e Espacialidades (galeria Central), além de ter realizado acompanhamento crítico de Ateliê Fidalga no Paço das Artes. Em 2009, fez as curadorias de Obra Menor (Ateliê 397) e Lugar Sim e Não (galeria Eduardo Fernandes). Foi repórter e redator de artes e arquitetura no caderno Ilustrada, no jornal Folha de S.Paulo, de 2005 a 2009, e atualmente colabora para diversos veículos, como as revistas Bravo e Trópico e o portal UOL, além da revista espanhola Dardo. É coautor de Roberto Mícoli (Bei Editora) e faz parte do grupo de críticos do Paço das Artes.
1. FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecilia (org.). Escritos de Artistas – Anos 60/70. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2006, p. 276
2. FERREIRA, idem, p. 279
3. FERREIRA, ibidem, p. 279
4. ESPADA, Heloisa (org.). As Construções de Brasília. São Paulo, Instituto Moreira Salles/Sesi-SP, 2010, p. 19
5. GONÇALVES, Alexandre. Nasa vai enviar jipe-robô para Marte. O Estado de S.Paulo, caderno Vida, 20.nov.2011, p. A31
Publicado originalmente no catálogo da exposição “Território de caça”, Galeria Zipper, São Paulo – Dezembro 2011